segunda-feira, novembro 27, 2006

Morreu Mário Cesariny

Morreu o Mário Cesariny... Portugal devia estar de luto... Eu sinto-me mais pobre hoje. Leiam-lhe as palavras e não o esqueçam.


Faz-me o favor...

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor -- muito melhor!
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

quarta-feira, novembro 22, 2006

Poesia erótica

O Joaquim Pessoa vai lançar por estes dias um livro de poesia erótica. Tive o privilégio de assistir, há meses, a uma leitura privada desses poemas. E de me deparar com o facto de muitos poetas terem escrito, ao longo da sua vida e obra, poemas eróticos que em muitos casos ficaram no esquecimento. Desde aí que tenho pesquisado poesia erótica. E tenho descoberto poemas magníficos que ando a guardar. Jorge de Sena é um dos poetas que me surpreendeu. Fiquem com a rara beleza e erotismo das suas palavras neste "Conheço O Sal..."
Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousada em suor nocturno.
Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.
Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.
Conheço o sal que resta em minhas mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.
Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.
A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.

sexta-feira, novembro 17, 2006

Trabalhadores descontentes...

Texto de reinvidicação laboral
Eu, o pénis, venho por este meio exigir um aumento de salário, apresentando
as seguintes razões:

1 Faço esforços físicos.
2 Trabalho a grandes profundidades.
3 A cabeça é a primeira coisa que uso em tudo o que faço.
4 Não gozo fins-de-semana nem feriados.
5 Trabalho num ambiente húmido.
6 Trabalho num local com iluminação e ventilação deficientes.
7 Trabalho com temperaturas elevadas.

Resposta da entidade patronal
Caro Pénis, após a análise do seu pedido, e levando em consideração os argumentos por si apresentados, a administração rejeita o seu pedido pelas seguintes razões:

1 O senhor não trabalha 8 horas seguidas.
2 Adormece após breves períodos de trabalho.
3 Nem sempre segue as ordens da equipa de gestão.
4 Não permanece na sua área de serviço e é visto muitas vezes em visita
a outras localidades.
5 O senhor não toma a iniciativa - necessita de ser pressionado e estimulado
para começar a trabalhar.
6 O seu local de trabalho fica bastante sujo após o seu turno de trabalho.
7 Nem sempre obedece às normas de segurança necessárias, como a utilização
de roupa de protecção.
8 Irá reformar-se antes dos 65 anos.
9 É incapaz de fazer turnos duplos.
10 Por vezes, abandona a sua área de trabalho antes de ter Completado as tarefas que lhe foram atribuídas.
11 E como se tudo isto não bastasse, o senhor tem sido constantemente visto a entrar e a sair do seu local de trabalho carregando dois sacos de aparência suspeita.

segunda-feira, novembro 13, 2006

Fazer amor

É tão bom quando os poetas dizem aquilo que queremos dizer. O que pensamos e sentimos. Até o que fazemos. Se calhar é mesmo para isso que servem os poetas. Leiam esta pérola escrita por Carlos Drummond de Andrade. O poema chama-se "Não vou pôr-te flores de laranjeira no cabelo" e fala de um amor intenso. Fala de fazer amor... e faz. Faz amor com as palavras de forma magistral.


Não vou pôr-te flores de laranjeira no cabelo
nem fazer explodir a madrugada nos teus olhos.

Eu quero apenas amar-te lentamente
como se todo o tempo fosse nosso
como se todo o tempo fosse pouco
como se nem sequer houvesse tempo.

Soltar os teus seios.
Despir as tuas ancas.
Apunhalar de amor o teu ventre

quarta-feira, novembro 08, 2006

Grande espaço publicitário... aproveitem!

Cores de Almodovar, Cores de Frida Kahlo

Nunca achei muita piada à Adriana Calcanhoto. Enfim, manias. A Joaninha deu-me a ouvir este poema na nossa primeira viagem. Chama-se "Esquadros". Quando eu for mais tecnológico ponho aqui a cançãozita com som e tudo. Fiquem com o poema para já. Também gosto das cores do Almodovar e da Frida Kahlo.

Eu ando pelo mundo prestando atenção
Em cores que eu não sei o nome
Cores de Almodovar
Cores de Frida Kahlo, cores
Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção no que meu irmão ouve
E como uma segunda pele, um calo, uma casca,
Uma cápsula protetora
Eu quero chegar antes
Pra sinalizar cada coisa
Filtrar seus graus
Eu ando pelo mundo divertindo gente
Chorando ao telefone
E vendo doer a fome nos meninos que têm fome
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela (quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle
Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm para quê?
As criancas correm para onde?
Trânsito entre dois lados de um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo, me mostro
Eu canto pra quem? Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle
Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço?
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Nao tem ninguém ao lado
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem e ela, quem e ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle

quinta-feira, novembro 02, 2006

Aristóteles diria... entre dois goles de chá...

Reencontrei este poema do José Carlos Ary dos Santos. Como acho que anda toda a gente a esquecer-se dele, do poeta, não do poema que esse parece-me que ninguém conhece, resolvi deixá-lo aqui. Sempre algumas almas vão descobrindo que no século XX houve gente que escreveu português primorosamente. O poema chama-se Arte Peripoética e foi escrito em 1965. Quarenta anos depois continua actual.


Aristóteles, visita
da casa de minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só
esta maneira de ser
contra a maneira do tempo
esta maneira de ver
o que o tempo tem por dentro.
Aristóteles diria
entre dois goles de chá
que o melhor ainda será
deixar o tempo onde está
pô-lo de perto no tema
e de parte na poesia
para manter o poema
dentro da ordem do dia.
Aristóteles, visita
da casa da minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só.
Ele sabia que o poeta
depois de tudo inventado
depois de tudo previsto
de tudo vistoriado
teria de fazer isto
para não continuar
com que já estava acabado
teria de ser presente
não futuro antecipado
não profeta não vidente
mas aço bem temperado
cachorro ferrando o dente
na canela do passado
adaga cravando a ponta
no coração do sentido
palavra osso furando
pele de cão perseguido.
Aristóteles, visita
da casa da minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só
esta maneira de riso
que é a mais original
forma de se ter juízo
e ser poeta actual.
Aristóteles, visita
da casa da minha avó,
também diria antes só
do que mal acompanhado
antes morto emparedado
em muro de pedra e cal
aonde não entre bicho
que não seja essencial
à evasão da palavra
deste silêncio mortal.